terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Veneno do Teatro, Sócrates e Jesus - por João Varella

Comentários do jornalista João Varella no site Trilhos Urbanos

Sobre a peça O Veneno do Teatro já falamos aqui do local da obra e do que fazer depois que a peça acaba. Hora de dar pitacos sobre o Veneno do Teatro em si.

Uma excelente desculpa para assistir outro trechinho do sarau musical que é promovido antes do espetáculo.
Já fiz alguns comentários sobre a peça no R7. Só que, como no caso de Vestígios, para ir um pouco mais longe vou precisar matar o final da peça.


Aviso isso para o caso de você ter interesse em ver a obra e querer ficar com a surpresa completa. Eu acho que não perde a graça, mas enfim, spoiler alert dado, sigo.

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Como disse na crítica ao R7, Veneno do Teatro é cheio de metalinguagens. Vale a pena estar com Sócrates fresco na cabeça.

Sócrates não deixou nada escrito. O que se sabe sobre ele veio por meio de seus discípulos, sendo o mais importante deles Platão. Porém, um marquês da França pré-Revolução e com o iluminismo em ascendência prefere ver o mestre pelos olhos de seu discípulo que teve mais importância como testemunha do que como filósofo: Xenofonte.

O marquês, consumidor de cultura e com riqueza infinita, quer ver a morte de Sócrates. Para isso, escreve uma peça de teatro.

Na concepção do marquês, a verdadeira representação teatral só acontece quando um ator realmente sente na pele o que o personagem está sentindo. Logo, ele vai chamar uma atriz e a envenenar – como a Justiça de Atenas fez a Sócrates.
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Interessante não perder o iluminismo de vista. Depois da Revolução Francesa, a Igreja perde força. A fé é substituída pela razão e a lógica.

O marquês tem a sua tese-verdade sobre como deve ser uma representação teatral. Mas sua busca é quase kafkiana: o mais próximo da verdade que a representação chega é como simulacro.
Se a verdade fosse mármore, a representação seria uma bela escultura feita de realidade, porém oca em seu interior.

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Na boca de dois atores representando no palco, o jogo metalinguístico ganha força.

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Sócrates é condenado pela Justiça a tomar veneno por negar os deuses gregos e corromper os jovens. É o pilar da razão, da lógica, do Iluminismo.
Do outro lado da moeda está Jesus, o personagem central da fé cristã. Assim como Sócrates, Jesus não deixa nada escrito e tudo o que se sabe sobre ele vem através de seus discípulos.
Outros ponto em comum dessas duas figuras históricas: ambos aceitam suas condenações (Jesus aceita ser o mártir divino, um avatar de Deus; Sócrates tem a oportunidade de fugir, mas prefere ser condenado por valor moral).

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O marquês impõe seu jugo a atriz Sophie. Ela bebe o veneno sem querer. O marquês diz que dará o antídoto caso ela faça uma representação digna do texto da morte de Sócrates. Mas ele não se convence e a deixa morrer.

Sophie não é Sócrates, ou Jesus e, pela atuação de Elen Londero, a personagem não está pescando lhufas do que o marquês está falando. É uma vítima, que não está disposta ao sacrifício do ideal de teatro que o marquês tanto insiste.

O marquês não consegue ter acesso a Sócrates, assim como é impossível ter acesso a Jesus. O dogma religioso oferece um acesso altamente questionável ao éter de Jesus. A razão não tem ídolos.
A peça se passa às vésperas da Revolução Francesa, que vai decapitar aristocratas como o marquês, que abusavam das pessoas de classes mais baixas, como Sophie.

A Revolução é uma sanguinolência bárbara sem fé, mas cheia de razões.

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